segunda-feira, 24 de setembro de 2007

O pianista endiabrado

Lembram que fui para Olinda cobrir um festival de música. Eis a matéria que foi publicada no Caderno B.

O pernambucano Vítor Araújo tem 18 anos, diz ser influenciado pelo Náutico, por Woody Allen e pelas cervejas com os amigos. Sentado ao instrumento, transforma-se: retorce clássicos, é aplaudido de pé, mas faz a comunidade erudita virar-lhe a cara. É um fenômeno

Renata Victal
Olinda, Pernambuco.

Tênis All Star preto, calça jeans e camisa de malha. Assim, desapegado de uma roupa formal para a ocasião, o pianista pernambucano Vítor Araújo tocou na 4ª Mostra Internacional de Música em Olinda (Mimo), que terminou domingo. Tal qual um Jamie Cullum do Nordeste, o garoto de 18 anos vem distorcendo peças clássicas e deixando narizes torcidos no vaidoso e competitivo mundo erudito. Entre os que viram as costas para ele está o maestro Marlos Nobre.

O motivo do desconforto é o modo como o rapaz mexeu nas harmonias de Frevo, uma de suas composições. Sua participação no evento quase não aconteceu. A produção temia que a comunidade clássica boicotasse o festival. Mas sua trajetória ascendente tem calado os opositores. O concerto do garoto arrancou aplausos do público que lotou o Convento de São Francisco e, logo após a apresentação, recebeu um convite do consulado italiano para se exibir na Itália em 2008. O jovem, que ainda não saiu do país, vai gravar seu primeiro DVD em dezembro, no Teatro Santa Isabel, no Recife.

Esposa de Marlos Nobre, a pianista Maria Luiza Corker-Nobre, membro da Comissão de Patrimônio Intelectual do Rio de Janeiro, condena as intervenções de Araújo:
- Quando um compositor põe barra dupla numa partitura é o ponto final. A música popular também é maravilhosa e acho que esse deveria ser o caminho do Vítor, onde poderá fazer qualquer arranjo. Ele precisa aprender que na música clássica não se pode fazer essas modificações. É um desrespeito. É grave - critica a pianista.

Professor do Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro, o pianista Ivanildo Guilherme Ribeiro diz que Vítor é um talento a ser lapidado e conta que já assistiu a uma de suas apresentações.
- É inegável que Vítor é um dos grandes talentos surgidos no Brasil - atesta Ribeiro, citando o arranjo de Asa branca (Gonzagão e Humberto Teixeira) como um dos melhores que já ouviu e acrescentando que ele deveria investir em temas próprios. - Não resta a menor dúvida, a habilidade dele não se discute. O problema é que, no caso, o compositor e o intérprete estão se misturando. Acho que ele deve ser orientado, até porque há possibilidade de sofrer conseqüências, inclusive judiciais, se reescrever partituras consagradas, como vem fazendo. Ele precisa entender que não pode modificar partituras de outros músicos.

O maestro João Carlos Martins põe a batuta na polêmica, mas para salvar a pele do rapaz. Não vê problema nos (re) arranjos, caso a interferência seja boa. Cita o francês Jacques Lussier e o americano Bobby McFerrin, que fazem Bach suingar:
- Já ouvi falar muito bem do Vítor. Infelizmente ainda não vi nenhuma apresentação dele, mas as referências que tenho são maravilhosas. Se ele faz bem, está de parabéns. Agora, se for de mau gosto, aí eu mato o cara.

Produtora do festival, Lú Araújo conta ter tido receio ao escolher o jovem para se apresentar na mostra. Mudou de idéia depois de ouvi-lo tocar.
- Ele é polêmico e tive medo em chamá-lo. Muita gente o critica porque ele muda todas as músicas, mas é fantástico, performático e empolga o público.

Distante da polêmica em torno de seu nome, Araújo diz que toca por amor e que não tem a intenção de irritar o meio. Mas confessa não conseguir executar os temas de outra forma. Ao tocar as Bachianas nº 4, de Villa-Lobos, costuma fazer o que chama de "citação". Adiciona compassos, misturando, na mão esquerda, notas de uma das partes da música e, na mão direita, notas de outra parte. O resultado impressiona pela beleza e está disponível em várias aparições em vídeos no YouTube.
- Estamos acostumados a achar que o bom é o complexo, mas é o simples que me preenche - disse à platéia. - Falaram que eu não era responsável com a obra dos outros. Sinceramente não sei definir o que é ser responsável pela obra dos outros.

Pianista desde os 10 anos, Araújo diz que não sabe o que acontece quando se senta à frente do piano. No concerto em Olinda, misturou Lenine, Chico Buarque, Luiz Gonzaga e Villa-Lobos. Empolgadas, algumas crianças tentavam imitar os movimentos do instrumentista com os dedos no chão da igreja.
- É o meu dedo que vai sozinho. Não sei o que acontece. A cada vez, a música fica diferente. Não toco com partituras porque acho que a partitura me prende. Aquelas bolinhas pretas me prendem. Minha memória é boa e prefiro tocar de cabeça. Querem que eu vá estudar na Europa, mas não sei se me encaixo nesse modelo. Eu me preencho com o público. Já levei muitas broncas, é o que mais levo na vida, mas não me importo - argumenta.

O pianista diverte e parece pôr mais ingredientes na controvérsia a seu respeito ao falar sobre suas influências, embora pegue luz em Chopin, Beethoven e Bill Evans:
- Minhas grandes influências são os jogos do Náutico, cervejas no bar com amigos e filmes de Stanley Kubrick e Woody Allen. Não digo que sou normal, porque seria pretensão demais desejar isso. Toco para quebrar a frieza inerente ao mundo erudito. Sou mais Galo da Madrugada do que Nelson Freire e sei que meu tipo de arte é suscetível a críticas, mas não gosto de radicalismo, não gosto quando querem me impor algo ou acabar com a minha liberdade. Meus dedos são uma extensão do meu coração.

Renata Victal viajou a Olinda a convite do festival

Um comentário:

Anônimo disse...

Você não está exagerando. Vi o rapaz no Sarau entrevistado pelo Chico Pinheiro e tocando maravilhosamente para complementar a simpatia do Chico.
O rapaz é simplesmente o máximo, fiquei com vontade de voltar a estudar piano de novo. A riqueza do toque e a delicadeza e limpidez do som são excepcionais, além do talento para improvisar. Graças ao bom Deus é super criança ainda e vai me proporcionar e a inúmeros outros brasileiros (enquanto não debandar para o exterior) muitos e muitos anos de felicidade ao ouví-lo. O Brasil está de parabéns por ter gerado esse rapaz; deve ser uma benção extra para compensar esse monte de políticos incapazes. Deus é brasileiro sem dúvida, começo a achar que é pernambucano, espero que ao menos seja corinthiano.
Só desejo a esse rapaz (egoisticamente) o máximo de sáude e produtividade para que eu possa ouvi-lo sempre.

Augusto Alberto da Costa Jr. São Paulo capital